12.1.19

soleira



gatos pardos

Me aproximei porque não resisti ao cheiro de seu cabelo se espalhando, ouço num português robótico mas esforçado de alguém que aprendeu a língua com um professor do Brasil.

Não sei porque dei um fora. Lá disse o meu nome à terceira insistência, e só porque ouvi um olha pra mim demasiadamente real. Culpa, senti-a logo, mais o poder que vi a M. exibir quando virou o ombro a um desgraçado que só queria dançar, e que desgraçadamente partilhei (faz parte, o entre-olhar o grupo de amigas desdenhando do desejo que aparece antes de escolhido). A expectativa que já se levantava no olhar transiberiano, azul e afunilado, do corajoso estrangeiro, era essa. Afastou-se a abanar a cabeça ao compasso do meu alívio.

E para quem ajeitava eu o meu cabelo, noite fora, de um lado para o outro, esta juba que só mantenho para ocupar por mim o espaço?

Horas antes, vi num reflexo de salamandra um laivo pressentido de desejo num rapaz, julgo que o seu nome é T., fumava cigarrilha em vez de cigarro, isso disse-me tudo para além do que ele dizia. De alto a baixo percebi, até quando discorreu palavras como psicologia-geração-expectativa. Tinha uns dois anos abaixo de mim, tocou-me ao de leve umas vezes, duas ou três, o suficiente para confirmar o efeito que essa diferença de idade faz. Um silêncio quando começo a falar, um fascínio a receber o avanço do meu gesto, a pele que recua para procurar, o efeito amazónico da minha sentença. Tal como o P., há uns anos. Desfruto da performance que o contexto me permite desenrolar, o cabelo de lado com palavras a direito. Tomo o meu tempo para ser e sinto a barriga esticar-se, em regalo. Homemfico-me? Mulhertorno-me? Finjo. Que distância vai daqui até aos destinos reais do meu mais despenteado desejo, bebedor, tomador de notas, agitador de microscópicas bandeiras cintilantes que esperam godot em bicos dos pés.

Você confunde afectividade com... com o que vai apanhando... nas circunstâncias.
Impressões, doutor?
Sim, impressões, muito bem dito. - e escreve a palavra bem circundada de um duplo sublinhado na margem da página.

A música estava africanada e transportadora. Funkier than a mosquito's tweeter. Quando se tornou maquinal a M. começou a adormecer, e fomos embora. Entretanto estivera eu na casa de banho a registar pensamentos sem caderninho, sem caneta, desprovida, tinha só o baton. Lá o pus, último reduto do vaidosismo ritual frente ao espelho. T. não reapareceu, e ainda bem.

Como ligar isto à minha crença teórica na inteligência amorosa do tempo longo, ainda tenho que pensar.

5.1.19

um

Deixei a meio um livro chamado L'homme qui avait deux yeux, apesar da estima que me permitiu nutrir:

Sobretudo pela sua capa mole e ilustração de azul-bom-gosto; sobretudo pelo título (a sequência que provoca: 1, a expectativa de singularidade, "um homem com dois olhos?" / 2, a evidência, "ah, não, é banal" / 3, "ah... usá-los, aos dois olhos, que possibilidade"); sobretudo pela sua arquitectura de história-na-cabeça. Reparo agora que é para mim livro irmão do La grande chutte, outra história-na-cabeça, isto é, outro rodar do mundo sobre um eixo que é a cabeça, que curiosamente também deixei a meio. Talvez sejam fórmulas (que amo, que digo sempre que amo, como o huis clos, como as memórias) que abandono por vezes, ou por períodos (estão ali, à minha espera) apenas por me distrair:

Sobretudo com o mergulho nesse espaço que é este, paralelo àqueles; sobretudo com precisar de uma estratosfera à volta, para onde possa às vezes ir nadar; sobretudo com caminhos como o que por acaso me levou a outro livro desta família de afinidades, o How to be both, esse terminadinho de fio a pavio, que difere dos outros numa ligeira distorção do eixo que faz rodar o mundo, no fundo uma abertura, uma pequena fenda histriónica, excentricamente deformada, que pode salvar o ensimesmado (ah... ser dois, que possibilidade). Lembro-me, a propósito, de um texto em que uma vez escrevi as palavras 'a lâmina dessa duplicidade', do poder de incisão que senti, as palavras sendo enfim precisas, aqui em imagem e em intenção, lembro-me do elogio que me valeu, aquele que à época recolhia como migalha de um bolo bem açucarado. Voltando ao livro, volto à sua ilustração, um pequenino recorte de uma pintura do protagonista da renascença:

A mão de uma Santa Lúcia segurando, dizem uns sites com ensaios entendidos que entretanto pesquisei, 'the symbol of a new awareness', 'the eyes of a new painter'; segurando, vejo eu, um pequeno caule de flor (colhido? oferecido? que se oferece? há quanto dura? durará? de que mundo é?) que bifurca em dois rebentos pesados para a fina haste, e que caem sem pétalas de frente para nós:

dois olhos