28.3.19

Afundei-me no sofá
aveludado beige
beije
por favor
não o meu interlocutor
boxeur
no outro lado do ringue
não, nem o embaixador
das projecções de filmes
que desbobina para trás
actores e
stand-ins em repeat
mas alguém, eu
no meu braço e bochecha
encostada
houve um bocado de
luta
e depois caí em lágrima
esgrima sem máscara
explique-me por favor essa
emoção
não dá, pá
deixa-me aqui no veludo
em modo mudo
para variar e para
estar
dás-me um golpe de
que devo erguer-me só
rainha
e logo outro de que
não posso ser
autosuficiente
decide-te lá
e deixa-me fazer a posição dentro
do ovo
só um bocadinho

26.3.19

traz uma planta

Traz uma planta
dizia o convite
até aos corredores que vão ter à
cameleira gigantesca
pesada, 
doce como 
geleia
traz um amigo,
dois dedos,
o teu cansaço,
um mapa,
a minha máscara
nocturna

dois olhos cabisbaixos em silêncio dobram um papel e constroem um

barquinho

as camadas dentro

Um par de lábios me
resguarda em desafio
são dois ou quatro
lábios?
não são os meus, diz-me a
consciência
que apesar de tudo fura
as imagens que aparecem
ando distraída, a perder a
lucidez
da membrana que vibra foto
sensível
onde está o toque?
no scroll gorduroso do meu
polegar?
no descarte endométrico com que
meço a negligência do meu próprio
ego
precioso?
na embaixada que fundei,
a dos amores emigrantes
investidos das maiores qualificações
em diáspora sem espessura?
na minha mão direita
quando
triste toca a esquerda?
no lençol amarfanhado, preso
no fundo da cama
(por isso desço eu, reduzo)
ou no desviar dos olhos do
falso amigo bem pago?
o mundo anda
bidimensional e a minha
pele e as camadas
dentro
ressentem-se


16.3.19

sublinhado 3

(...) está a ouvi-las, sentada à beira da cama, e rasga-se então o véu que cobria um sentimento inteligente e profundo; o que se esconde está escrito; levanta-se para dividi-lo em pequenas folhas de caderno e anota que o que está a passar-se, de superfície perceptível,
ou invisível,
é para todos lerem.

(Um beijo dado mais tarde, Maria Gabriela Llansol)

sublinhado 2

(...) sobre esta casa pairou um mistério, um não-dito, que alisou, numa pequena pedra, uma irreprimível vontade de dizer.

(Um beijo dado mais tarde, Maria Gabriela Llansol)

sublinhado

(...) fico sentada numa poltrona, a fazer companhia a toda esta luz ressentida onde entro lentamente, e, pela segunda vez, pela mesma porta.

(Um beijo dado mais tarde, Maria Gabriela Llansol)

15.3.19

Os ringues costumam ser para a luta
e não para o luto
a epístola terá que dar lugar a outra forma
de buscar os grãos passíveis de serem
peneirados pelos dedos e de se deixarem cair
na pele hospitaleira
morna
a epístola não poderá dar lugar ao sermão
isso não permitirei embora
tenha tendência para embatucar
engasgar de ternura do destinatário
nuvens de cotão formam-se dentro do
armário em todo o tempo do
silêncio
e contra a vontade dos demais incluindo eu
própria
vejo um lençol sair no fim de cada mês
demasiado cedo
da garganta
açucara-se sozinho ou com a ajuda de uma vontade vertiginosa
de ver o afecto
chegar ou a repúdia a ser
definitiva
é um vício estranho de aconchego
na rede de dormir
entre essas duas extremidades, pois a
a epístola ora
procura poiso ora se vira,
pêndulo complicado no seu apoio
supersticioso na secreta
esperança
de uma atenção não dita
aos rebentos das tulipas
aos títulos do jornal com seus olhos e desejos
aos ninhos de horizonte
a epístola tem um fim

14.3.19

Ocorre-me a imagem de um nível 
ou de um aquário 
que por mais que se incline
ou rode
mantém a compostura horizontal do seu 
líquido modo de estar
com uma viga planadora acoplada ao peito 
poiso para os braços 
bóia para por cima espreitar
à tona de todos os
padrões de
revolvimento
das vulvas dos anos
e dos dias dos outros 
e contudo e
helás
olha a insuportável tempestade de
copo de água que se transporta num
saquinho para qualquer lado
dá muito jeito e é de borla
cuidado é com os juros, o penhor do 
mágico empenho 
e o ovo precioso que se quebra
como um dia te avisaram os
antigos 
guardadores das relíquias 
do percurso 
tu vibras, vibra
não deixes que
te convençam dessa ideia de que
nada se transforma, 
da derradeira desolação de que se ergue o barro 
ou dos fins iminentes sem 
uma festa, enfim 
um mimo 

10.3.19

recuo

Recuo para que passes
com o teu tambor
o ilíaco osso
de nome mitológico
empurra o lado necessário
para que em tango soldadesco
possa mirar a
rota e o
espaço vazio e
bondoso
que fica

1.3.19

quebrou-se
como um ovo precioso

inconsciente

Sonhei contigo
o cenário era de festa mediavelesca pelas ruas de uma cidade
portuguesa inventada, tipo
são joão ou queima das fitas ou fim
do ano, mas estranhamente a um de março
todos os que conheço entraram no sonho
e entraram de dentaduras
escancaradas e tropeções na multidão,
carros bêbados e portas da rua com
escárnio de serem verticais, tudo
está um bocadinho torto, digo a certo ponto, como
se as coordenadas sofressem um lapso quase
imperceptível
e entretanto entrámos numa casa de banho cheia de inscrições
de eternidades e outros aforismos,
os azulejos decadentes em cadência de me esfregar, rodopiavam
e ali mesmo
amor-ódio entre semelhantes diferentes
com uma luz avermelhada e descontinuada
sobre nós