28.2.19

o pilar rodado a quarenta e cinco graus no upper lawn pavillion


Nunca lá estive mas é quase como se sim.
J-P., V., D., F., les enfants, combinaram lá ir passar o fim-de-semana enquanto almoçávamos nas gentis tapas, carne para os homens, vegetais para as meninas, eu comi de tudo. Isto em camden town, numa paralela a uma das mais belas ruas, uma das afectivas de londres, ali a um passo do regent's park e do mini-crescent, até do túmulo do john soane.  Estava muito sol, daqueles de registar mais alongadamente o tempo que nos acomoda, e a T. vestia com negligência orgulhosa um fato de trabalho tipo mecânico, andando calma e pequenina de caracóis libaneses, o J-P. sempre igual, a generosidade intelectual nos olhos-globos, só mudando a língua para inglês nesta cidade, um inglês perfeito, claro, tal como um dia (no dia em que nos conhecemos! ainda eu não afrancesava com ele) me disse que eu tinha, gentil mentira.
Delícia de almoço, daqueles das pessoas que vêm de estradas diferentes do mundo e se sentam para calmamente serem iguais, e sem pressas se gostarem.
Vai ver a dolphin's square, não é longe da tate antiga, diz-me, tem uma escala surpreendente para londres, e vais gostar. Registei e fui, sentei-me, olhei, conversei com uma senhora velhota inglesa, fiquei sem bateria. De uma cabine telefonei, a F. atendeu, como combinamos? Encontramo-nos no turbine hall para ver a performance às tantas horas, combinado, o B. vai lá ter.
O D. não veio, il bosse encore, c'est son éducation, tu vois, justifica-se F. a uma amiga para mim desconhecida que entretanto apareceu. Eu observo e nada digo.
No dia seguinte, ou dois dias depois, já não sei, saímos da casa eduardiana, ali muito perto do estádio do arsenal (a segunda das casas londrinas deles que conheci, e que partilhavam com o B., o meu querido amigo irlandês, personagem de romances de vários séculos que lhes apresentei), e apanhámos o comboio rumo a cambridge. Sobre o que se passou por lá já escrevi talvez: visita às belas casas e colleges, o B. desapareceu de bicicleta, e ficámos estes três inusitados flanando pela pequena cidade, apreciando verdadeiramente, e com delicadeza, tudo aquilo, com vontade de não ver o pano de fundo, que era negro, do que nos ligava como personagens. O almoço, pouco digno de nota pelas iguarias, ficou-me registado porque percebi: duas mulheres que estamos, e tu D., bebes leite de uma e de outra, em modo menino te pões. Mais uma vez observei e nada disse.
Sinto todo esse fim-de-semana como se tivesse de facto também ido ao upper lawn pavillion, projecto dos queridos smithsons, dos queridos que nos haviam inspirado secreta e envergonhadamente quando éramos dupla, e cujos relatos ouvi de algumas destas personagens: o D., o J-P. Cheguei a ver fotografias dos enfants que jogavam pingue-pongue lá fora e a F. contou que os abraçaram.
Parece que lá estive e que me encostei ao pilar rodado a quarenta e cinco graus do pavilhão, e que ciente de todos os ciclos do tempo, de tudo o que é o amor possível, quando possível, calmamente, esperei o sol chegar e aquecer-me a testa: a arquitectura possível.

atenção,

tudo isto são rascunhos

paisagem 2


ideias:

deambulação pitoresca ou iluminista,
ilustração de um instinto natural encenado
evoluído entretanto para a autofagia,
o optimismo do scroll eterno do feed
imagens, imagens
paisagem de selfies
quem representa quem?

um contínuo dentro e fora,
o boxeur do outro lado reparou que
me confundo com as outras coisas,
diz que quando escrevi
fora de ti tudo é periferia
ora, na qual eu própria me situaria,
pois claro
diz que foi o que mais o impressionou e sorri
quando me vê a auto-citar-me,
logo eu que falo da culpa de me afirmar
e que me desculpei mil vezes pelo atraso

já eu sorri quando falei do samuel beckett como imagem
de um pedido que me faz e houve um entendimento total
do que dizíamos,
boa,
agora vá, mais um pouco de conversa e
atenção para a semana que vem
para que as estradas suburbanas que desenho
sem razão
não sejam as mesmas

la grande chute

ontem foi dia de epopeia individual no mundo seco burocrático, armada em heroína das pequenas coisas, porque trabalho não é esmola
com um pequena euforia saí do triunfo de apenas me sentar direita e
falar com voz de
se ouvir
e fui à dança, aula de dança para arredondar o dia com
o corpo no chão afagado de linóleo, e os olhos
fechados
com os outros somos sombras, sente o pé, a pele,
este rapaz que não fala português e com quem
brinco às cegas
às tantas dei um tralho
um grande queda
aparatosa
de costas, sem aviso
e mesmo com muito gelo, agora dói-me um osso que acho que pertence
ao complexo da bacia
aquela que abre e fecha conforme o
movimento, isto porque na disciplina clássica ganhei
certos vícios, o de rodar as ancas para fora, oferecendo a fronte e
encolhendo o dorso, joelhos vêem os lados e distendem a
estrutura, nesse vigamento me
amparo
e me situo mulher, me contorno, coisa que
descubro nestes dias que é uma definição de termos
saltitantes
e contudo
caí, fui ao charco
percalços da grande cena, the bigger
picture

27.2.19

dedilham o ar aqui à
volta, alguém
dedilha
e o que não sabes é que amo muito, com
cultivo, a liberdade
e fugi por várias vezes
ao abafar exigente de certas conveniências
do gostar ou da companhia
desempoeirar: era essa a imagem que me
ocorria nesses momentos, como
desejo
e se te tornei embaixador de
enchentes minhas de procura é
porque me baralhei
e te vi,
acho, em espelho-medo,
em contradição enraizada das
estrelas


26.2.19

cléo levita por um momento, exercitando-se


(Cléo de 5 à 7, Agnès Varda, 1962)


nota sobre "paisagem"

o texto da entrada anterior vai ser reescrito

25.2.19

paisagem

Vou escrever então sobre a paisagem
para combater esse pudor de ser
uma, una
porque as células ou assim
se juntam de alguma forma em escultura de mim,
mulher e tal

quero que seja útil, a paisagem
(ao contrário do belíssimo diagnóstico da canção)
é-me absolutamente prévia
como a ti, a eles
e sofre pequenas erosões com o meu passo, o teu, o nosso
de cada dia

com lápis de cor desenhamos o espaço
(projectos tentam existir)
e com o corpo também, gastamos os degraus
e as solas, vestígios
as laranjas apodrecem sozinhas querendo lembrar-nos
de as comer
olha as vitaminas, andam aí resfriados
na selvagem pintura
porque uma ideia de paisagem é essa, a impressão
romântica, ou o carro que rola na estrada nacional,
ou o postal

outra é deitarmo-nos na erva ou nos passeios
(passeios, lá está, lânguida e lúdica
palavra para as pedras)
e na pele ser frio ou ser molhado
e fundirmo-nos por um instante com o fugidio mundo
não porque vá ele partir
se é que me faço entender

il faut cultiver notre jardin
famosamente se escreveu
tento lembrar-me da frase como humilde desculpa para o que
nos dias de hoje se chama de self-care 
e a vontade, a vontade
é tudo o que há, ouço e creio muitas vezes,
mais ou menos,
e penso: o jardim,
o que é senão o talhar de um redor à nossa imagem,
a fuga pela cuidadosa
ilusão de sairmos de dentro do ego, enquanto o afagamos
mundo-homem contra a selva
com sorte redentor espelho do criador
ou talvez negócio para viver entre o fora
e o dentro



ponto de fuga

Pudor
palavra que vejo o observador apontar
sobrolho tentando compor a constelação da pessoa
à sua frente
podemos não falar de mim?
e no entanto não me calo, tudo é egoísta
também o silêncio
insone que me faz querer sair,
procurar, politizar
o caminho até a um par de olhos e muitas
mãos
gosto de percorrer o caminho até alguém, julgo que lhe disse
ainda
isso é interessante
acenei, consentindo, passando à frente
duvidando já
culpa ou amor? crença na sempre possível transformação,
julgo
mas que bem ou que mal me faz a perspectiva?
o cubismo é humano

22.2.19

Ouvi ontem falar do retorno de saturno
planeta gigantesco que nos esquecemos que
existe tanto como nós (!)
e que demora trinta anos a dar a volta ao sol,
aparentemente tendo um poder astrológico sobre os habitantes terrestres
dessa idade, um ano em tempo saturniano
pois o retorno ou descame das
peles vem revelar o bom ou mau trabalho que se terá
feito ou não feito no dito espaço de tempo nesta coisa do 
ser, e chocalhar a mansa cama em que nos deitámos
o rosto que merecemos, la femme de treinte ans
do balzac ou da adília, ou só eu
sendo eu aqui um qualquer eu,
visto que cansa ser sempre o mesmo

também ouvi as palavras esquizóide,
androide
e cinzel

escolhi esta última como instrumento de
minúcia para registar a quarta-feira de cinzas que
também ontem foi, harpa vibratória das
guelras do presente
porque é que esta versão do homem há de ser mais real
do que a versão do ano passado,
perguntei
porque esta é agora, porque 
deu a volta e revelou-se
humano, demasiado,
ou seja quiçá cruel, ou menino,
quiçá achando-se ele próprio planeta
ou talvez mostre agora a sombra, metade de todas as esferas
volte-face, penso
no que há de mais perto do coração e no mais político
que há no seu mundanismo
ou só um giro, uma pirueta sobre o próprio
eixo
umbigo


18.2.19

deus está nas portas

deus está nas portas
disse o edgar pêra a um alberto pimenta risonho no filme
depois de uma belíssima indagação sobre a porta, a duplicidade, a possibilidade de entrar e de sair,
etc.

(o filme é o Homem-Pykante, à conversa com Alberto Pimenta)

foi bela também a conversa a seguir, no cinema, ouvir sobre a franca amizade e o aprender com o outro que afinal se faz poesia, o poder salvador e psicossomático de ser terno, ainda que provocador, e de rir da vida ao contrário

a casa às escuras

A semana divide-se em dois, nestes últimos. Um arco de andantino-addagio-allegro à quarta e outro oscilando em vários ma-non-troppo e terminando num domingo sem andamento.
A casa às escuras ontem porque faltou
a luz
e estranhamente me acalmou o abrir as portadas e andar pela casa a receber o céu alaranjado
de duas da manhã.
Consciência plena como uma lua: sim, houve tumultos neste ciclo-vinte-e-quatro-aos-trinta; sim, deu-se o que se chama sofrer; sim, força também; sim, soube viver apesar, e bem, colhendo alegria e sabendo-me ; mas sim, não arrumei bem a casa, e sim, só agora vejo a simultaneidade de tudo a que cheguei, e têm que mo mostrar: os livros espalhados e os pratos sujos, a minha própria beleza e ânimo (animula vagula blandula) em passinhos de pontas e conchinha, depois das performances esforçadas do circo de meio de semana, das vãs investidas mascaradas de sábado, e pego nas mãos a taça de solidão que como às colheradas aqui nesta noite. Consciência embaladora esta, que estranho. Uma mão terna seria perfeita aqui, um testemunho calado a ajudar, a esperar que voltasse a luz. 

16.2.19

demasiado centro

Perdi o foco aqui
várias línguas
os três ou mais níveis de imagem, corpo, pedra
não foram bem sintetizados, agora
surgiu um aparente peso escuro tipo
interior de taberna antiga mas é tudo uma questão de
ritmo e de não me terem apanhado na
rua mas sim na página
vou mas é abrir as janelas, está sol
deixar a luz entrar e arejar
posso fazê-lo porque estou viva

emprestado

Schwerer werden. Leichter sein.

Tornar-se mais pesado. Ser mais leve.

(Paul Celan via X.)

15.2.19

diálogos, monólogos

allons au cinéma, S.? j'ai envie de revoir les monologues de paul éluard sur l'amour. tellement beaux.
é a tua cara. 
non, c'est plutôt celle d'anna karina, un sourire discrèt s'imaginant en moi.
oui, on y va, beauté-toujours-la beauté, me dit-elle. j’ai ma voiture, je te prends devant le palais après ton cours de danse, j'amène l'italien-mystère et quelque chose pour dîner.
gentille-toujours-gentille. à tout de suite alors, je pars danser. m'écraser les genoux, m'enrouler avec des autres corps, une vingtaine ce soir, et jouer l'enfant. m'ouvrir les hanches et regarder des gens dans les yeux. putain, depuis quand est-ce devenu rare? j'ai soif.

j'ai imprimé 44 poèmes pour qu'il lise, le docteur
boxeur qui me défie
de l'autre coté de la salle
pour qu'il comprenne les nuages qu’envahissent la salle quand mon corps
est là
pas maintenaint, lisez chez vous
il est curieux, il me demande que trouvera-t-il sur ces pages
je divague et il me remet dans la route de
ma mère et de la contemporaineité des bouleversements fondateurs
avec ses pensées sur le masculin
l’abus d’un certain mec
moi en me faisant de très forte
rien d’important, juste le temps, le temps, me dit-il
não se preocupe, tem a sorte de gostar de pensar
lá isso gosto, mas não só, leia isso

arrivés au ciné qui est un mur
qui est l’espace, disait l’architecte
l’espace qui est le temps qui est la pierre
nous passons un arbre, un certain fumeur est là
vejo mal ao longe, toda a gente sabe,
daí a minha sobranceria até focar
a sua sobrancelha, olá
nous parcourons le mur, S. et moi, son mec italien nous suit
o que foi isto, frieza, pergunta S.
pressentiu tudo, como sempre
curioso o fio que liga 3 personagens
S. que me perguntou, naquele dia em que improvisadamente,
ela de vestido, fomos até ao mar mergulhar, flutuar, dar boas-vindas
a que vida fosse, e já sentadas manejando a pedrinha que guardo na estante,
sol poente, me perguntou
e o teu amigo do teatro
que tem ? il te trouve très belle d’ailleurs, digo
on voiait bien que vous vous aimez beaucoup, ele gosta muito de ti
mas há um freio, diz
e eu olhei o mar e não percebi nada
em dois minutos de foyer de teatro viste isso tudo
e eu nunca te falei dele, que bruxa és
e agora no foyer-muro antecedendo o filme
a mesma pergunta, não, é outra, seguida de percebi tudo,
novamente
j’ai du vous arreter pour vous voir dire bonjour
êtiez-pas vous des bons amis, esprits?
na fila para os bilhetes digo não compreendo nada
eu que sempre suspeitei deter alguma sabedoria à nascença
e foi aí que mudámos de língua
começámos a falar francês

o seu mec italien anda ali perdido, tolo
faz-me lembrar o G., tolo, italiano e perdido também
que durante uns meses foi meu destino de comboios
helvéticos, era mesmo tolo
vê coisas que mais ninguém vê, por acaso, comentou
aquela amiga que chega às cozinhas pelo mesmo caminho bacoco que eu
passeávamos suavemente, era um gentleman,
aprendera com o pai, falava sempre do pai,
acordava às seis da manhã e regimentava a vida
tão seriamente, havia ali um mistério
depois chorou só porque fui normal para ele
you are so kind
e a lágrima não perdoou, seria a ultima vez que o via
ali na piscina de zurique com os matrecos que me deixaram ganhar por pena
antes do último comboio
mas já depois das contorsionistas partilhas tão francas no seu sofá
e cama, até se manchou e ele nem foi obsessivo com a limpeza
pelo menos à minha frente
manípulos e alavancas de brincadeira e comando, à vez, a língua italiana
sobrepondo-se à inglesa pouco dada à luxuria
e depois também de projectar, sim, tinha um projector,
o night of the hunter que já vira cinco vezes
na sala dele, e de olhar atentamente para as minhas reacções
e recitar-me as teorias que o seu amigo M. lhe contara do filme
e que ouvi novamente palavra por palavra, sem tirar nem pôr, no dia seguinte
à beira da piscina do amigo
isto é tudo muito estranho, pensei
a ternura dói-lhe porque está dorido
foi desde esse G., do fim desse G. que nunca seria amor, só entretém terno
que comecei a chorar depois do extâse
contei isto a um amigo que me disse que isso é muito masculino
(oh, le docteur, le boxeur, adoraria saber isto)
mas é só quando estou só, o extâse só, de almofada, sabes ?
outro corpo, como na dança, não faz chorar,
em principio.

regresso ao cinema já sentadas, o mec italien que provocou
esta analepse foi à casa de banho, de qualquer modo,
male de machina, diz ele, fico até com medo que se perca até
lá abaixo, mas a S. cuidará
S. teoriza sobre o frio, os portugueses
é covardice (português lindo, o dela)
é imaturidade
é não saber o amor
mas não é amor
quand même, dit-elle
pressagiando as galáxias que aparecerão no écrã
non, non, je dis, regardons le film

l’absolu manque du sens de l'humour, de la dérision, et surtout, de l'auto-dérision…kundera en parle souvent, de l'essentiel sourire aux choses
non, je répète, je ne crois pas

il ne faut pas théoriser l’amitié, digo
ni les gens, sauf s'il s'agit de nous mêmes
allez, on regarde le film
sans paroles

hoje à noite há jantar em casa dela, da S.
nunca lhe disse que já imaginei um filme, um pequeno roteiro
que é ela e a sua casa porque são extensão uma da outra
nos braços movimentados e nas louças com café
é fácil enamorarmo-nos dela e das suas pestanas
mas teria que ser no piso de baixo porque tem o passa-pratos
e as plantas sobre fundo rouge
ao fundo
inusitada amizade feminina esta, ela com as suas tecelagens
e mãos de camponesa das ilhas do sul do mundo
eu com as minhas neuroses de urbe
provinciana 

allez, le film est fini
rien est possible, juste
un mot irréparable: tendresse
(et S. me demande: ça va?)
le même sentiment que j’ai ressenti la fois ou
je suis allée voir Dance de Lucinda Childs
dans le plus beau bâtiment de Genève
le Bâtiment des Forces Motrices
j’aimais le bâtiment aussi bien que son nom
les forces qui méttent en mouvement
l'insuportable mouvement de la musique de Philip Glass, dans ce cas-là
dans l'apogée répétitif des années soissante, des
danseuses en blanc se répétant:
en vrai, en écran
mon nez et ma tête submérgés dans une têmpéte d'allergies
des vraies, à la poussière et au
détérgent du bureau 
et quelques chaises dérrière moi et de mon diluve,
D., celui qui a coupé les jours en deux
et F., son ange-en-femme,
qui venait de me demander justement pourquoi on ne se parlait pas
oh dieu, que pourrais-je te répondre
juste un verre de vin rouge
et suporter le spectacle

a Childs virá com o mesmo espectáculo à cidade onde agora moro. a ver se vou, se reescrevo a sua memória, ou se deixo só assim.



Sou performática
não vedes, conterrâneos?
atiro o cabelo
ecoo o riso
neurotiso as palavras
com jogos de encolher e esticar
a profundíssima
levíssima
infinitesimal
Ai, falsos cartesianos
vamos lá a ver
de que matéria somos feitos
bolhas de sabão
ou lava em fóssil
de qualquer modo só a respiração
é coordenada

12.2.19

Tira-me este ecrã da frente e
traz-me um
lápis e um papel para
traçar um risco e depois
parar
pairar
como as avós nos seus sofás
um dia inteiro
em loop
a primeira letra do nome de um amor    
vindo à baila 
a pé coxinho e já
não se lembra
só que fazia calor
ou então muito frio, depende
da geografia de que queres saber
aqui só está mesmo o naperon 
pousado ele também

pois sentada é justamente uma boa posição
para não enlouquecer
olhos em frente, passos em redor
o doutor do outro lado do ringue
ou um filme de maxilar anquilosante
uma estaca aqui plantada sou
esgrima, sono,
lago ou fogo de artifício
tudo pode ser

no fim do dia
mãos vazias
a não ser pelas cascas de batata
salvadoras no seu descascar
os pulsos rodam, a lâmina desliza
o produto do motor é rapidamente concretizado
manuseável, precioso por um segundo
pronto para a varinha mágica que o
desfará
já está, agora limpar e
fechar a gaveta
fumar um cigarro que nunca acontece
porque ontem deu na televisão uma
emissão sobre o fetiche
a atribuição do desejo a um objecto
como se fosse um recurso estilístico
dos dias e das mãos
não é batata mas ocupa
e teatraliza o espelho
o mesmo do cabelo que cresce
cresce
e sai da moldura
ocupa a sala envolvendo os habitantes
que não estão

antes:
quantas áfricas, navios
plantações de geada
chícharos, café
exóticos congos e jindungos
o terço na mão e o costume de
papelote português debaixo
da saia e nas patas dos
frangos muito chiques
quantos cinemas arejados do
modernismo tropical
e suspensórios bem penteados,
uma madeixa loira por conhecer
quantos retornos, primeiros de maios
páginas forrando o chão de paris
e cabines telefónicas semanais
quantos quilómetros e termómetros
terra revolta, luz
para que eu chegasse a esta cadeira
que é feminina
que é casual
que é o anti-tempo
que é a mãe sentadamente completa
e o congeminar de um nomadismo
paradoxal erguendo-se na bacia
que a genética me legou, com
mais ou menos ginga, inusitada,
dançante porém raíz

pois sentada é talvez uma boa posição
para enlouquecer
zoom in, zoom out
laboriosos píxeis
ou a supressão das horas que
se virmos bem é tudo o que sabemos ter
ou não sabemos
fingimos, como eu que tendo
a espacializar o tempo e a culpa
situando-me entre um pretexto e um
muro de pedra cheio de musgo
por isso não me encosto
faço figas a que a sorte
me conceda meio de
fazer jus
à fabulosa fusão biológica e
consuetudinária que aqui se deu
parece ficção isto de viver
enceno pois o necessário para
ordenar: papéis de esquisso
contas por pagar
o pai a avisar
e memórias, essas empilham-se
no lava-louças e outras vezes
não, eclipsam-se
e planos, esses pairam até me
apanharem numa esquina
e me agarrarem com
ganas de atenção
atenção às horas
não te atrases
ou pelo menos abre os olhos,
bebe um copo

é a ordem possível, digo
saltando entre as colinas de
tralha em espera
ou sentada
escavando túneis de sentido
ligando os pontos