4.5.19

É um problema de hermenêutica o
dos dedos no teclado e das
fronteiras

o linguajar do par de
jarras em ti
pousado como múmias videntes

mesmo se com o sotaque luminoso
de enrolar rebuçados
que ainda ouço

era um problema de geografia a
confusão entre estar aqui
ou aí
vim por isso para dentro

recebo a corrente de ar
mas sei que sou estes ossos
e mais adulta me inteiro livre

mesmo se nos meus gestos todos
(que procuro elegantes no arejar completo)
gosto tanto de ti

podíamos casar numa casinha
ter uns filhos e uns livros e
uns mundos

e a minha mão estaria toda
alerta
da presença dos teus dedos

e de crescermos ancorados num
ventinho fresco
junto a uma porta junto ao mar junto a uma cidade

juntos cada um desenroscado e
bravo
maior

24.4.19

O lado de fora dos anos
dois mil
está do lado de dentro
de todos os poços que
lado a lado
são fundos

o que não se diz
mete-se nas pregas todas
dos lençóis e dos túneis
implanta-se como salitre
nas cutículas

cuida por isso bem
do que não dizes
já bastava a atenção ao que digo,
me dirás
e dizes bem

mas é que o mosto
que depositas
deverá adocicar, cuidado com
os vinagres falsificados

como karma
vão aparecer
para te dar umas dentadinhas
e chocalhar os bolsos
à procura das moedas que se perderam no forro
e que por lá ficaram nos anos do desterro
ou da aventura

que bom seria descoser o casaco
inteiro
e sacudir
rosas, pérolas, chávenas
comboios
manhãs
Tenho um vício
diametralmente oposto
ao vício
de uma amiga minha
que tem um grande
vício
assim nos toleramos
com os ombros a querer
fugir para o meio
e para não julgar
vamos beber um copo esta sexta
e dizer nunca mais
agora não
e brindar à nova arrivista do seu
ao velho desdentado do meu
pedir um desejo de
velas mordidas para que
uma cortina de flores desça
e se faça uma nova cena
(sempre igual, mas assim
é que és bonita
e sabes que és forte e não vês
e olha que me tinhas prometido que
e alertado para
e ai ai ai)
e no fundo somos duas estrelas
distraídas
Estão-me a lavar os vidros
com aquelas escovas redondas
e o tecido turco
de uma escala que nos faz formigas

chove muito e como o meu pé direito
é de quatro metros, não chego
aproveito
encharco as palas dos olhos
(ainda posso dizer olhos?
sempre a mesma coisa
o mesmo recurso
sempre os mesmos
dois
com uma manchinha acastanhada no esquerdo
miopia partout
olhos querendo ser mãos
mãos querendo ser
mais)

escorro e observo de um microscópico
pescoço curvado
a concentração da água nas baías
que do cansaço são
bacias
raios de sol, chamo às pregas
ilustres
que saem da sua moleza franca
hoje guardam uma pitada de sal para pôr
na sopa de amanhã
e já vou no terceiro duche do serão
para que tudo faça pandã

o mapa não é o território
ilustres notaram
inúmeras variações me tentam
o território não é o mapa
sem mapa não há território
o mapa é o território
eu sou um mapa
será que sou um território
que mapa estão os meus pés
terna canção sentada
e errante
meus pés
entranhas querendo ser pés


22.4.19

Abrem-me as gavetas todas
e pressinto que ainda há
uns fundos falsos

sempre fui péssima com arrumação
mas fazem-me notar que demoro
um século e meio entre palavras
bem medidas

de modo a controlar a superfície da
poeira que paira nos fotões
daqui prali

recebo como raspanete
o meu teatro do pensamento
por isso faço um furo de uma gaveta para
a outra

para que pingue
a noite toda o suco espremido
da roupa estendida na minha testa

planeio a minha estratégia
da semana, deixar ir
como é que isso se planeia

ensaio a bondade
o amor
a solidão
tudo me fica mais ou menos largo ou justo

a não ser as flores que ontem colhi
e até comi ao sol para
que desacelerassem o desmembramento
dos armários

pus uma flor no cabelo e foi-se
gone with the wind, brinquei
e a minha mãe riu-se

lembrando o beliscar das
bochechas da scarlett
como as cores naturais

que bem maquilhada por deus
costumo dizer
e a minha mãe ri-se



o meu amor
é tão bom
gostava que provasses
para ser boa menina, diz
cantos da boca tipo clips
de sarcasminho


19.4.19

um amigo meu leu um poema e disse-me "reparei na citação de b fachada". tive que perguntar qual era. não tinha reparado. era do bê é pra meninos, e chegou completamente inconsciente.

this made my day
Deixa-te de termos técnicos
disseram-me no
meio do fumo e do granito
que fome vou matar hoje,
vou pedir uma tosta com o vinho da
casa
sim, sim
nós não comemos porque o cinto está
a apertar
um lábio tinto, isso hoje não temos
mas é o país que mais consome,
sabias
oupas ficam os copos vazios
sem a marca do seu
beber
como se chama o zoom quando estamos a falar
do som
veio ao caso a propósito de um crepitar de
muito perto da ponta incandescente
de um cigarro

chega o rei e a rainha, sentam-se
à mesa que é comprida e de madeira
tosca a fazer de cave
parabéns pelo que fizeram
é assim assim e assado
banal e artesanal
existencial e polímata
e na conversa ao lado falam
da ingrata desorganização de
uma colega de trabalho
a minha tosta derrete enquanto me
chega da direita uma história de amor
na índia e na itália
daquelas que se adiam e enfim
se dão
ooooh dizemos em uníssono
num automatismo sentido
e de cabeça chegando ao
ombro

depois tenho que falar contigo
chega-me em frase uma bola
cruzada que agarro largando
os utensílios que
me sustinham o convívio
está bem, fala
escusas de fazer um drama
para me pedir um número e
um desconto
não desafies, amigo
fica-te mal a cunha a
querer meter-se
por entre os cotovelos desta mesa

acaba tudo na esticadíssima despedida
dos dias todos e
rodopia enfim o vinho
é segredo, mas gravo um áudio a subir os degraus de minha casa
que envio a um desconhecido
pois é
íntima soleira,
estranho mundo

18.4.19

É impressão minha
ou este é o espaço de hesitar entre
a palavra certa
e um rio cheio de corrente

uma página divã de psi
de costas para os talões e os outros
objectos que no meu saco
avizinham o caderninho

espécie de testemunha sem olhos
fermenta as razões desconhecidas
e vagamente
uma vontade de chegar

mais perto

15.4.19

02:59

Tive que acordar
mesmo se não dormia
e abrir a janela do quarto
arejar e ouvir uma gaivota
do abafado círculo cabeça

há muito que não me visitava a
insónia
a insónia vanessa
minha conhecida já não sei
de que ano

a última vez que tive que abrir assim
a janela
li uma mensagem que era
prometes-me? eu prometo
e o calor hormonal do silêncio

impôs
uma brecha de ar fresco
de tão amoroso ai que belo
o cosmos aspirador
em roda da minha cama fundo

hoje guardo a semana
de distracções do pântano numa
gaveta, coisas que não valem mesmo
as horas, e pois que ao arrumar

a quem peço que me
peça
quando repito insone?
o que condenso nas bocas e mãos
das minhas mais queridas
injusticinhas?

regresso ao enterrado
partido
engessado
só porque pequena me vi
desenroscada

bebi café a mais, trabalhei
com afinco hoje como boa pessoa
presente e até disse
na quarta-feira ao meu ouvinte
que alguma coisa fez sentido

quero dormir
deixei de ver, longe da vista
longe
e desejada quero-me pelo meu neurónio
mais lúcido
mas se aparecer o meu repositório, não sei bem

talvez baixe a cabeça
ou feche os
olhos
lhe mostre o continente furado na minha
costela, mas ainda é cedo
espero a tarde em que

a saúde
me ponha seca, defintivamente seca
na agilidade de estar
e de chutar um berlinde
plim




retrato (para a S.)


Forte como pernas de mulheres
de paula rego
diz-me a retratista abrindo uma
frincha a mais a portada
para uma luz sobre madonna
olho o fundo da taça de chá
pequeno universo
e a mente desce até ao calcanhar
em cada célula se realiza
agora que espreguiço nesta
memória
activo o corpo dolorido
feliz da aprendizagem
óssea
que começou naquela sala este-oeste
e na tapeçaria que no chão
ao centro se
emana enfim tecida
durante mais de um ano
no vão capricho de
ser diferente, dirão os que não vêem no
fio o tempo
e o materializar das suas mãos coreógrafas e dos olhos
nómadas
nem no extemporâneo modo de viver o
seu centro de observação
sem performance senão a do próprio
e corpóreo desenhar
da biografia